Gota de sangue no chão

Peço a Deus que ao ler esse texto, você possa compreender a responsabilidade dos pais para com os filhos. Oro para que Deus revele ao seu coração, a fragilidade e a sensibilidade da alma de uma criança.

O que vou relatar nessas tão poucas linhas, se passou num sítio em Atibaia. Um sítio afastado da cidade, afastado da civilização, afastado de qualquer vida racional. Era meio de mato mesmo.  

Passávamos todos os finais de semana no sítio. Eu, meu pai e minha mãe. Toda sexta-feira, final de dia, fugíamos de São Paulo para Atibaia. Viajávamos numa Caravan prata, minha mãe dirigia pela rodovia Fernão Dias e vivíamos no sítio até o domingo começo de noite.

Posso sentir até hoje, até agora, a calma e a paz daquele carinho de pai. Eu estava indo dormir numa noite fria, gelada e úmida, de um rigoroso invernoTodas as noites meu pai me colocava para dormir; e naquela noite por mais uma vez; ele me cobriu, com todo cuidado e carinho, com um cobertor feito de uma pura lã de carneiro. Era um cobertor bem grosso e pesadinho que cobria o frágil corpo de uma criança de 8 anos. Ele me envelopava e me protegia do frio; ele fechava toda e qualquer brechinha de ar frio. 

Naquela noite na hora de dormir, creio que pela última vez meu pai me levou para a cama. Me cobriu cuidadosamente. Sentou, como de costume, no chão ao lado da minha cama; ele se certificou de que eu estava bem cobertinha, de que eu estaria protegida daquele inverno. Era como um ritual, cheio de carinho. Mesmo ele sendo ateu, ele me conduzia numa linda oração à Deus em francês; uma doce oração onde eu chamava Deus de 'Papai do Céu'. Assim eu adormecia em calor e proteção; enquanto minha alma e meu espírito descansavam, meu corpo dormiu. Minha biologia batia num ritmo tranquilo e calmo.

Minha alma e espírito acordaram o meu corpo de repente. Em meio à gritos de discussão e briga, copos quebravam nas paredes de madeira da casa; a casa toda tremia; parecia que era a casa quem gritava; ela vibrava por inteiro, a casa tinha tomado vida. A casa em que passávamos os finais de semana, era toda de madeira; paredes, piso, telhado, portas, janelas e móveis. A cada copo quebrado na parede, no lado de fora do meu quarto, a casa toda tremia. A cada golpe, mais um corte era feito nas nossas almas; era só eu e aquela casa quem testemunhávamos aqueles fatos.

Não sei o que se passava na minha mente naqueles momentos. Tento até agora, me lembrar o que eu sentia, mas simplesmente não consigo; a única sensação que tenho é a de que eu ficava em estado de choque. Era um som insuportável; vidros, pancadas e gritos estremeciam minha consciência; minha alma e espírito sangravam juntos e unidos, com aquela casa. Nós três sangrávamos.

Nessa noite específica, meu quarto foi invadido. A porta do meu pequeno mundinho foi brutalmente aberta; aquela porta de madeira bateu com violência em minha cama. Eu, obviamente, acordada e em prantos, me coloquei sentada na cama. Olhei fixamente para o chão. Lembro apenas que eu não tinha coragem de olhar para cima; talvez Deus tenha enviado um anjo, um anjo que guardou os meus olhos daquela cena. Minha vida só foi capaz de ouvir o sufocar de minha mãe, e de ver em câmera lenta, uma gota de sangue cair no chão.

Chegamos na garagem do prédio de São Paulo. Eu continuava fingindo que dormia. Meu pai me pegou no colo. Todos nós, os três, entramos naquele elevador. Disfarçadamente, abri meus olhos, e por duas janelinhas bem estreitas das minhas pálpebras, pude identificar que aquela mulher de pescoço enfaixado era minha mãe.

Anne Sophie no Sítio em Atibaia