⏱️ 1 min (intro) | 14 min (full)
Uma reflexão sobre mudança, hábitos mentais e consciência
Há textos que não apenas informam: revelam. Foi o que aconteceu quando li o artigo do meu amigo, mentor e filósofo pessoal, Edmundo Conde, no qual ele aborda a resistência às mudanças e o funcionamento do cérebro. Uma ocasião de absurda sincronicidade com minha atual fase de vida.
Ao ler seu texto, compreendi que minha resistência aos modelos e hábitos mentais não era apenas simbólica ou emocional, era também física, explicada pelo funcionamento dos gânglios basais, localizados no mais profundo centro do cérebro.
Percebendo esse aspecto físico, algo se organizou dentro de mim. Não porque fosse totalmente novo (eu já havia lido sobre isso), mas porque finalmente, isso ganhou nome, contorno e sentido.
Foi nesse momento que uma frase ouvida anos atrás foi “desarquivada” do meu subconsciente e retornou ao consciente, com uma clareza quase incômoda:
"Anne, sua prisão não tem grades.”
Mudanças que não escolhi
Durante muito tempo, associei mudanças à sobrevivência. Não a escolhas ou crescimento, mas a uma adaptação forçada.
Na primeira infância, vivi a violência doméstica e um divórcio conturbado (já não lembro quantas vezes fui ao Fórum João Mendes). Ainda criança, entre os 9 e 11 anos, enfrentei abuso emocional; aos 11, o abuso sexual. Na pré-adolescência, precisei me adaptar a uma nova família. Aos 18 anos, fui expulsa de casa.
Essas não foram mudanças. Foram rupturas. E moldaram profundamente meus modelos mentais, meus mecanismos de defesa e minha forma de me colocar no mundo. Um mundo em que eu precisava ser aceita e, principalmente ser necessária.
Até ali, é importante afirmar com clareza: não havia escolha possível. Não havia consciência, autonomia, muito menos recursos internos para outra postura.
A adultez e o hábito de ceder
Na vida adulta, veio enfim uma fase linda: a maternidade (mesmo sem recursos materiais ou financeiros dignos). Mas, profissionalmente, algo seguia desalinhado. Dos 18 aos 36 anos, não consegui construir uma vida profissional saudável. Sempre trabalhei com eventos e sempre me adaptei demais. Cedia demais. Entregava mais do que meu corpo podia.
No início, me apaixonei pelo universo dos eventos. Comecei na arquitetura promocional, projetando estandes na prancheta, com régua paralela, papel vegetal, nanquim e cópias reveladas à base de amônia. Em poucos meses, já estava no pavilhão acompanhando a montagem dos estandes que eu desenhava. Era a experiência de ver minhas ideias tomando forma em tempo recorde. Expressar a sensação é difícil.
Pouco depois, passei a “projetar” eventos inteiros. Algo ainda mais impactante. Minha paixão se encaixou perfeitamente no estilo workaholic do segmento. Pela primeira vez, eu me sentia aceita e necessária.
Porém, com a maturidade da profissão vieram também os conflitos. A vontade de gerir eventos passou a colidir com imposições financeiras e decisões que feriam valores fundamentais que eu tinha. E eu cedia. Cedia quando o gerador era cortado. Quando a ambulância era descartada. Quando o seguro era ignorado. Quando a desmontagem precisava acontecer de madrugada. Quando estruturas essenciais eram negadas.
Cedi em temas inegociáveis para mim: segurança, coerência, legislação, hospitalidade.
Foram 36 anos “sofrendo” mudanças: 18 anos de impactos emocionais e outros 18 de impactos físicos, impulsionados por uma adrenalina constante. O resultado não poderia ser outro: foi extremo. Um AVC aos 36 anos.
Reconstrução e novos limites
Após a reabilitação, reconstruí o que foi possível. Em 2018, retornei ao mercado de trabalho, mas em outro segmento: a aviação. Trabalhei por 6 anos e 8 meses em Ouvidoria; um ambiente de previsibilidade, escuta estruturada e atividades controladas. Um território seguro, ainda que coercitivo.
Ali, novamente, cedi. “Ignora isso”, “Encerra o caso”, “Não paga” Ou, como se tornou comum na equipe: “désolée”. Com o passar dos anos, principalmente no pós-pandemia e no ingresso das IAs, o ambiente que deveria priorizar a Experiência do Cliente passou a oferecer respostas robotizadas e argumentações frágeis.
Mais uma vez, percebi que estava sofrendo mudanças e vendo meus valores serem provocados.
Hoje, aos 50 anos e disponível no mercado, ao tentar retornar à área de Eventos, encontrei duas barreiras silenciosas e incontestáveis: o etarismo e o preconceito contra a pessoa com deficiência. Mais uma vez, me vi “sofrendo” mudanças.
Mas desta vez, algo está diferente.
O texto que virou espelho
Até aqui, eu estava descrevendo fatos. A partir daqui, falo de consciência.
No artigo de Edmundo, um ponto me atravessou profundamente: o modo como o cérebro resiste às mudanças. No meu caso, me identifiquei especialmente com o papel dos gânglios basais, responsáveis pelos modelos e hábitos mentais.
Foi então que compreendi algo essencial:
As grades da minha prisão não foram apenas impostas. Muitas foram soldadas ao longo do tempo, por crenças que eu mesma aceitei, por silêncios que mantive e por uma vida inteira de adaptações sem posicionamento.
Isso não é sobre culpa. Nem sobre terceirizar responsabilidades.
Com uma exceção clara: tudo o que vivi até cerca dos 15 ou 16 anos não estava sob meu domínio. A partir dali, o autoconhecimento já era uma possibilidade, mesmo que mínima. Ainda assim, só iniciei essa busca de forma consciente após o derrame.
E até hoje, sigo tentando acessar o autoconhecimento de forma plena.
Sofrer mudanças ou atravessá-las?
Percebo agora que passei grande parte da vida sofrendo mudanças, especialmente no campo profissional. Nunca me coloquei verdadeiramente para ser ouvida. Nunca pedi compreensão. Apenas me ajustava às exigências, às imposições e expectativas alheias.
Em muitos momentos, minha opinião sequer era considerada. Em outros, fui simplesmente descartada. Mas quieta fiquei.
O que o texto de Edmundo me mostrou, e o que nosso último café confirmou, é que mudança não precisa ser sofrimento quando há consciência, intenção e posicionamento.
Agora sim, compreendo porque minha prisão não tem grades, nunca teve.
Reconhecer isso não apaga a história, mas muda o modo como sigo a partir dela.
Aos 50 anos, uma escolha
Talvez esta seja a primeira vez que afirmo isso com lucidez: não preciso continuar sofrendo as mudanças.
Aos 50 anos, posso (e devo) tomar a iniciativa. Não para negar as mudanças, mas para não permitir que elas definam o meu valor. Não para lutar contra o que foi, mas para não repetir os mesmos padrões por inércia.
Toda mudança pode ser atravessada com equilíbrio e dignidade. Toda mudança pode, inclusive, ser libertadora.
Hoje, escolho aprender. Aprender a não confundir adaptação com apagamento. Aprender que resiliência não é suportar tudo. E, sobretudo, aprender que a liberdade começa quando reconhecemos que as grades não existem.
Anne Matthey em Um Croqui, Uma Vida
Gostou deste texto? Receba os próximos diretamente no seu e-mail, assine gratuitamente meu Substack.
Material complementar sugerido:
» Leituras complementares para compreender mudança, hábito e funcionamento da mente:
Rápido e devagar: Duas formas de pensar por Daniel Kahneman: explora os modos de pensamento que moldam como resistimos ou reagimos às mudanças, e ajuda a entender por que mudar exige mais do que vontade.
Quebrando o Hábito de Ser Você Mesmo por Dr. Joe Dispenza: Conecta ciência, consciência e responsabilidade pessoal.
Livewired: The Inside Story of the Ever-Changing Brain por David Eagleman (edição em inglês): analisa a neuroplasticidade e a capacidade do cérebro de se reorganizar. Um contraponto fundamental à ideia de destino imutável. Mudança é biologicamente possível.
» Playlist sugerida para ler com calma e alma:
Interstellar Official Soundtrack | Full Album – Hans Zimmer | WaterTower
» Podcasts interessantes:
Psicanalista Revela a Verdadeira Raiz da sua Ansiedade (e não é o estresse) - Miriam Garcia | #403
Neurocirurgião Alerta: Esses Hábitos Estão Destruindo Seu Cérebro! - Leo Faria | Lutz Podcast #223
