Quantos lutos cabem em uma vida?
Uma pergunta que, mais cedo ou mais tarde, todos precisaremos nos fazer.
Há experiências e vivências tão brutais, que acabam moldando ao nosso redor, imensos muros para nos proteger.
Com o passar dos anos — e das experiências diversas não digeridas — acabamos nos tornando pessoas duras, de pavio curto, por vezes agressivas; e, sem perceber, magoamos até quem mais amamos.
Foi assim comigo.
E com você?
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| Quantas lápides há em sua alma? |
Há algumas semanas, recebi um telefonema de uma assistente social de um importante centro de reabilitação aqui de São Paulo — referência em humanização e profissionalismo. Ela disse:
“Achamos melhor te dar alta.”
Naquele momento, eu não percebi que estava recebendo mais do que uma alta médica — era também uma alta social.
Alta do único lugar que me acolheu e me amparou após o AVC que sofri.
Era hora de mais uma mudança.
Mais uma etapa a ser vivida e superada.
Aprendi sobre o luto ainda na infância, com a morte dos meus cães de estimação — fiéis e amorosos companheiros. Perdi tantos amigos peludos, que só de lembrar deles agora me vêm as lágrimas.
Essas pequenas vidas foram literalmente arrancadas de mim.
Lembro de cada um, e das circunstâncias que os levaram.
Aos nove anos vivi outro tipo de luto: a separação dos meus pais.
A ausência de um pai no lar é, sim, absurdamente difícil.
Lembro-me deles dizendo:
“...nada vai mudar...”
Pura mentira.
É isso mesmo: men-ti-ra.
Tudo mudou.
Com eles juntos era ruim, quase insuportável.
Com eles separados, continuou ruim — e, anos mais tarde, quase fatal também.
Além do pai perdido, perdi uma mãe que tentou preencher o vazio com o álcool.
Mesmo presente fisicamente, ela estava ausente emocionalmente.
E perdi meu pai de novo, aos poucos, em fragmentos.
Em certo momento, ele decidiu formar uma nova família — uma nova esposa já com dois filhos. O pacote pronto.
Cruel!
Perdi o pai que era só meu.
Perdi a convivência do pai no lar, e nas poucas oportunidades aos finais de semana a pouca atenção, ainda era compartilhada.
Um pai com quem eu pintava e escondia ovos na Páscoa.
Com quem eu fazia longas caminhadas pelo sítio em Atibaia.
Andávamos de mãos dadas e, quando uma árvore surgia no caminho, brincávamos de não soltar as mãos.
Chegamos até a colocar árvores de propósito à nossa frente, só para testar a força daquele laço invisível que nos unia.
Nunca mais encontrei aquele pai.
Hoje percebo que nossas caminhadas eram, na verdade, metáforas emocionais do que um dia se perderia.
“A culpa é de quem?”, pergunta a música do Legião Urbana.Minha? Sua? Dele? Dela? Do destino? De Deus?
Talvez essa pergunta nem caiba mais, porque o tempo passou.
Mas cada luto deixa uma marca — uma crosta na alma, grudada como uma craca, como um carrapato selvagem difícil de arrancar.
Luto é isso.
Não é apenas sobre a morte física — é sobre morte, ponto.
Luto é a separação dos pais.
A perda de um amor.
A distância de um amigo.
A demissão de um trabalho que dava sentido à rotina.
É o rompimento, a ausência, o vazio.
Cada perda molda o nosso caráter, educa as emoções, nos ensina — ainda que à força.
Perdi meu pai várias vezes, de várias formas.
Perdi minha mãe.
Perdi namorados, amigos, um casamento, um trabalho abençoado.
Perdi minha carreira, meus colegas, meu chão.
E, às vezes, ainda me perco de mim mesma. Como pode?
(Legião Urbana)
Se os lutos são muitos — e são — maiores deveriam ser os ganhos.
Ou, pelo menos, é o que gostaríamos de acreditar.
Mas será mesmo?
Em uma sociedade em que a alegria virou alergia,
e a felicidade se tornou um dever individual,
será que viver é isso mesmo?
São Paulo, 14 de Dezembro de 2013
